Aproveitando a nota de repúdio, publicada pelo Siprocfc-MG, e por toda a repercussão que as últimas declarações do presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre o trânsito e sobre sua opinião quanto à não obrigatoriedade da formação de condutores em autoescolas, o presidente do Siprocfc-MG escreveu um artigo, intitulado “Da Lama ao Caos”, em que reflete sobre toda a situação. Confira, abaixo, o texto na íntegra:
Artigo – “Da Lama ao Caos”
Quando você concede a um político o privilégio de administrar uma nação, você permite que ele gerencie sua vida e seu futuro. Você outorga-lhe o direito de legislar ou comandar seus sonhos, seus melhores sonhos.
Em uma sociedade democrática e minimamente civilizada, a escolha nas urnas normalmente acontece pela identificação ideológica e simpatia popular. Além disso, em uma sociedade com disputas políticas acirradas e uma polarização partidária, a “escolha” nas urnas acontece, normalmente, através da manipulação das massas pela propaganda política-eleitoral.
A crise institucional, política e econômica que o país vive desde 2014 é o reflexo das escolhas que o povo fez para governar a nação. Claro, existem outras razões para o caos que o país vive e que estão relacionadas à cultura, formação política e à correlação de forças entre o capital e o trabalho. Mas foi a decisão, a opção, a escolha popular que levou o país ao lamaçal que vive hoje.
O presidente atual foi eleito com um grande clamor popular, muito pelo desejo de mudança, muito pelo ódio ao Partido dos Trabalhadores (PT), muito por seu posicionamento radical a diversos temas, que boa parte do brasileiro refutava ou defendia, mas não tinha um interlocutor. “O Brasil é um país conservador e que respeita a família. Temos que governar para a maioria, não para a minoria. Vamos resgatar a honestidade e a transparência”, exclamava o presidente eleito em sua campanha.
Quando um político é eleito através de um grande clamor popular, se gera expectativas imensuráveis sobre as realizações pactuadas no processo eleitoral e que serão feitas em seu mandato.
O povo espera que, logo após a posse, o governo já comece fazendo, já comece mudando. Porém a expectativa dos eleitores com o atual presidente começa a virar frustação, segundo pesquisa recente do Instituto DataFolha.
As primeiras decisões já contrariam o que foi prometido na campanha. Há uma inércia nas mudanças, e as contradições claras na postura do presidente antes e agora no governo. Incoerências gravíssimas, que chocam o “eleitor da família brasileira”, detentora do bastião da honestidade e bons costumes.
Em um processo de consumo de determinado serviço ou produto, o cliente desenvolve um sentimento, chamado pela psicologia de “dissonância cognitiva”, que é um arrependimento pós compra. Esse sentimento criou a conhecida ferramenta de marketing chamada pós-venda, que serve para neutralizar ou atenuar o arrependimento, evitando-se a devolução dos produtos ou a inadimplência.
Esse artigo foi construído para demonstrar a total indignação com a forma leviana, desleixada e inconsequente que o atual presidente trata assuntos fundamentais para a vida do brasileiro, de uma maneira especial o fim da obrigatoriedade da formação de condutores, contrapondo o que ele tanto apregoou em sua campanha: “colocar ordem” no Brasil.
A intenção é fazer uma correlação entre o processo decisório do presidente e o de seu eleitor, ou seja, como o eleito e o eleitor pensam na hora de decidir e quais consequências essas decisões acarretam na sociedade.
O livro “As Armas da Persuasão” (Cialdini, Robert B, 2009) disseca sobre o “Princípio do Compromisso e Coerência” e da importância da manutenção da decisão, mesmo que equivocada, em qualquer processo. No referido “Princípio”, a pessoa, cujas crenças, palavras, ações não condizem é vista como confusa, hipócrita e até mentalmente doente. Por outro lado, um alto grau de coerência costuma estar associado à força pessoal e intelectual. É a base da lógica, da racionalidade, da estabilidade e da honestidade. A incoerência é, comumente, vista como um traço de personalidade indesejado (Allgueier, Byrne, Brooks e Revnes, 1979; Acch, 1946).
Segundo Cialdini, já que, em geral, é do nosso interesse sermos coerentes, incorremos no hábito de sê-lo automaticamente, mesmo em situações em que este não é o caminho mais sensato. A coerência oferece um atalho em meio às complexidades da vida moderna. Depois que tomamos uma decisão, a coerência obstinada nos permite um requinte bem atraente: não mais quebrar a cabeça com o assunto.
Não temos que examinar o bombardeio de informações diárias para identificar fatos relevantes. Não há necessidade de despender energia mental para avaliar os pós e os contra. Não precisamos tomar novas decisões difíceis. Basta agirmos de forma coerente com nossa decisão anterior.
Os eleitores de Bolsonaro praticam, mesmo que inconscientemente o “Princípio do Compromisso e Coerência”. Não vão questionar as decisões. Não vão debatê-las de uma forma profunda e vão se abster quando o assunto for polêmico e a propaganda do governo for avassaladora, mesmo que via “lives”, um encanto para seus eleitores mais apaixonados.
A maioria do eleitorado de Bolsonaro dificilmente se indignará com suas atitudes e decisões, mesmo que estas prejudiquem ou alijem seus sonhos, sua qualidade de vida. Essas pessoas foram às ruas, fizeram campanha, lutaram voto a voto para elegê-lo. Pelo “Princípio do Compromisso e Coerência”, elas tendem a manter o apoio e até defender aquilo que não acreditam. Bolsonaro sabe disso! E tem usado com maestria esse princípio para a defesa de seus projetos, mesmo os mais inconsequentes.
Segundo Serguei Tchakhotine, no livro “A Violação das Massas pela Propaganda Política (1952)”, para legitimar suas conquistas, os ditadores sustentaram, seguidamente, que elas eram efetuadas, quase sempre, pacificamente, ou, pelo menos, sem emprego da violência física. Para ele, isso não é verdade. É apenas aparência: a ausência de guerra não impede o emprego de uma violência não menos real: a violência psíquica.
As seguidas verbalizações regidas à força, sem o devido “ritual do cargo” feito pelo atual presidente, suas indicações de militares para os setores mais estratégicos, sua presença costumeira junto a entidades e lideranças que representam o poder do Estado – o poder repressivo – demonstram que Bolsonaro pretende governar não pelo uso da violência física (embora seja um adepto deste modus operandi), mas pelo uso da violência psíquica, da simbologia que lembra o medo, o sangue, a dor.
TRÂNSITO – PUNIÇÃO OU PREVENÇÃO, VIDA OU MORTE
O Brasil registra aproximadamente 45 mil mortes no trânsito por ano (Sistema de Informações sobre Mortalidade, 2016), causando um prejuízo financeiro de mais de R$ 56 bilhões, se considerados os custos dos acidentes ocorridos nas rodovias federais, estaduais e aglomerados urbanos, tudo absorvido pelo Poder Público, empresas privadas e família das vítimas (IPEA/Polícia Rodoviária Federal).
Um acidente de trânsito por minuto é registrado no Brasil, que tem o trânsito como a terceira causa de morte no território nacional (70% delas envolvem jovens de 18 a 25 anos). O Brasil é o quarto país do mundo com maior número de mortes no trânsito, segundo o Datasus.
Embora o país viva em um cenário de guerra com números de mortes tão alarmantes, o presidente Bolsonaro divulgou, recentemente, em uma “live” no Facebook, que acabaria com a obrigatoriedade da formação dos condutores em autoescolas.
É de se espantar tamanha frieza com que um assunto tão grave como esse foi tratado pelo presidente da República. Causa estranheza verificar que não se propôs inicialmente um debate e ampla discussão com o povo brasileiro, sequer houve um estudo de impacto técnico e econômico, e o pior, o presidente demonstrou um profundo desconhecimento das leis que regulamentam o trânsito brasileiro e as razões pelas quais elas foram criadas.
Ora, o aumento de veículos transitando no Brasil (milhões e milhões) e o consequente aumento do número de acidentes, naturalmente forçaram o Estado a criar leis que aumentam a punição, além das políticas públicas que atuam essencialmente na prevenção. É natural que o Estado aja com mais firmeza para esse fim.
Portanto, a formação do condutor não é um benefício concedido pelo Estado para os Centros de Formação de Condutores, mas uma política de segurança pública que deixa claro o dever do Estado em zelar pela segurança das pessoas, exercida através da educação no trânsito.
Nossa Carta Magna impõe, no Artigo 23, Inciso XII à União, Governo Federal e Municípios “estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito”. Na teoria, os artigos que tratam da educação no trânsito em nossa Constituição Federal são perfeitos, mas utópicos na parte que cabe ao Estado.
Na prática, essa responsabilidade fica por conta dos CFCs, que vão além de sua missão precípua. Atuam de uma maneira fervorosa com ações e campanhas educacionais, envolvendo permanentemente a sociedade civil. Ao Estado cabe arrecadar e, vez ou outra, realizar suas famosas e inofensivas campanhas de trânsito em períodos de férias e feriados. Estradas, avenidas e outros investimentos em infraestrutura e sinalização é sonhar demais.
É crime extinguir a formação dos condutores!
Mas o presidente, desde sua posse, tem “jogado para a plateia” tais decisões. Prioriza a redução de custos em uma atividade que salva vidas, uma vez que reduz sensivelmente os acidentes e mortes, em detrimento de desejos pessoais e subterfúgios para minimizar os erros e infrações que a própria família comete. É o caminho mais curto, mas ilegal e assassino.
Se não, pasmem! Segundo dados do Detran-RJ, divulgados pela Folha de São Paulo, a família Bolsonaro acumulou ao menos 44 multas nos últimos cinco anos. Michelle e Flávio, mulher e filho do presidente, superaram vinte pontos em infrações em 12 meses, o que deveria resultar na suspensão de suas carteiras de habilitação.
Essas informações não chegam à sociedade.
A impressão que passa, e temos visto isso na prática desde o início desse governo, é que crimes ou má condutas ou ainda infrações têm penalidade e punição para os outros, e a esses cabe um discurso legalista. Já para família do presidente e os seus “próximos”, isso é “café pequeno”.
Segundo Roberto Andrés, professor de urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais, “colocando-se como alguém de fora da política (embora esteja nela há décadas), o ex-capitão se dá o direito de atacar a corrupção ao mesmo tempo que comete suas infrações – afinal, quem nunca levou umas multas no trânsito?
Para ele, o bolsonarismo realiza a proeza de, sob o pretexto de atacar a suposta corrupção de uma suposta indústria da multa, liderar uma verdadeira cruzada a favor da contravenção no trânsito. “Retirar radares das estradas, aumentar a pontuação máxima da carteira de motorista, eliminar testes de substâncias químicas, extinguir a multa pela ausência da cadeirinha de criança – todas essas medidas favorecem e induzem a condutas que aumentam os riscos de acidentes e mortes”.
Quando a banda Nação Zumbi escreveu a canção, “Da Lama ao Caos”, o objetivo era criticar os maus tratos e a indiferença do poder público frente à realidade vivida pelo povo de Recife nos mangues, nas favelas. Parte da letra diz que “Quando eu organizo, posso desorganizar. Quando eu desorganizo, posso organizar”. Temos a impressão de que o caos e a lama vão caminhar juntos no atual governo, se a sociedade civil não se organizar. Se organizando ela desconstrói e desorganiza todos os projetos inconsequentes, como esse, e caminha para um futuro pacífico e vindouro. Entretanto, pelo “Princípio do Compromisso e Coerência” já explicado, é bem certo que um terço dos eleitores do “ex-capitão” compactue desse projeto e de outros tantos descabidos e “sem noção”.
Esses eleitores são a grande ameaça, pois vislumbram a mudança de lei como um benefício financeiro imediato e a possibilidade, agora, da realização do grande sonho da habilitação. Manipulados pela propaganda diária, tendem a contribuir para o atraso de políticas públicas já consolidadas, elaboradas através de estudos e da experiência vivida pelo segmento beneficiado. O mais sombrio nesse cenário talvez não seja a vantagem pecuniária, mas a postura de conivência com toda e qualquer decisão e atitude do líder máximo.
Ao invés de desorganizar aquilo que está devidamente organizado, por que o governo não luta para criar novas ações mais emergentes, principalmente aquelas de geração de emprego e renda, as de Educação, fortalecendo o ensino fundamental e a pesquisa científica, aquelas da Saúde, principalmente a saúde básica?
É importante destacar que o fim da obrigatoriedade da formação de condutores em autoescolas contribuirá para o fechamento de pelo menos 80 mil CFCs em todo o país, gerando outros milhares de desempregos de famílias de trabalhadores.
A realização do sonho de uns, não pode representar o pesadelo de outros com vidas ceifadas, graças à má formação ou a nenhuma formação do condutor. Defendemos a prevenção. Políticas frequentes de educação no trânsito, que sensibilizem e atuem na formação continuada dos condutores dentro e fora das salas de aulas. A obrigatoriedade da formação dos condutores em autoescolas salva vidas. Defendemos a paz!
Um trânsito seguro, humanizado, respeitoso. A obrigatoriedade da formação de condutores em autoescolas é a segurança do trânsito.
Defendemos a vida!
Defendemos políticas rígidas de educação e a manutenção da Lei, tão bem fundamentadas em estudos técnicos e científicos. A obrigatoriedade da formação dos condutores é a Lei. A Lei gera vida.
Que a sociedade saia do transe, se elucide e lute pela vida, esvaindo-se dos interesses individuais. Que o presidente e seus pares usem a razão, pelo menos uma vez na vida, para evitar o caos e não permitir que a lama se arraste país afora.
Que nosso setor de CFCs se reagrupe, se mobilize e lute em defesa da Lei, da prevenção, da paz e da vida. Que o brasileiro resgaste seu brilho nos olhos e que a esperança seja uma rotina.
Alessandro Dias – presidente do Siprocfc-MG